Texto Miguel Castro Caldas
Encenação Bruno Bravo
Interpretação Ana Brandão, Anabela Brígida, Bruno Simões, Gonçalo Amorim, Raquel Dias, Peter Michael, Ricardo Neves Neves, Tiago Viegas
Espaço Cénico Stephane Alberto
Figurinos Ana Teresa Castelo
Espaço sonoro Sérgio Delgado
Desenho de luz José Manuel Rodrigues
Estagiária de produção Catarina Ferreira
Assistência de produção Andreia Carneiro
Direcção de produção Mafalda Gouveia
  • Estreia no grande auditório da Culturgest 4 de Março de 2008

Ao princípio estava tudo espalhado. Por todos os lados. Paredes, balcões, dossiers. Ajuntamentos. Grupos a falarem com grupos como se cada grupo fosse uma pessoa. A dizerem o mesmo. Coisas diferentes. A chamarem-se por nomes. A repetirem-se. A contrariarem-se. Papéis e papéis espalhados pelo chão. Tudo abundava. Depois, subitamente, A Ana surgiu e invadiu tudo. Tudo passou para dentro da Ana. Tudo desapareceu. As pessoas, as roupas, os sítios, tudo isso deixou de existir. Ficou a Ana. Única. Nua. Primeira personagem desta repartição.
Bruno Bravo

Fecharam a Repartição, ou estão para a fechar, não porque repartia mal mas porque os papeis estavam sujos, foram lá uns fiscais e acharam que estava tudo muito imundo e agora só podem abrir quando limparem tudo, e nós já não podemos beber ginjinhas ao balcão, já não podemos trazer a roupa a cheirar a tabaco (o letreiro diz «proibido fumadores», e não «proibido fumar»). Afogamos as mágoas fazendo seguros de saúde e fechando-nos na casa que ainda estaremos sempre a pagar já quando adoecermos de vez, quando o movimento devia ser o contrário - adoecer não, que doentes já éramos – o movimento é convalescer, levantarmo-nos da cama com o pijama encharcado das febres, e tomarmos banho ainda fraquinhos, mas já com algum apetite, e depois irmos passear com olheiras mas sem óculos escuros,

Convalescer é tossir ainda nos transportes públicos, trazer os impressos na mão porque o código de activação da Internet não funcionou e ir à repartição declarar o nosso arrependimento, mas de repente, chegamos lá e está fechada, só restou o director que está acamado num quarto dos fundos como os dos merceeiros que vivem nas suas mercearias, entre os sacos de cebolas e de batatas, o director da repartição está a morrer, tenha seguro ou não tenha seguro,

E eu, que sou eu a única que estou aqui, que vinha confessar tudo, sirvo eu agora de confessora deste desgraçado que só é capaz de dizer as coisas que eu também me sinto dizer, quer dizer, sinto-me sentir, como se estivesse a ter um pesadelo em que no pesadelo estou onde estou na realidade, ou seja, como o meu nome, Ana, que se pode ler para a frente e para trás, estou a dormir a ter um pesadelo no qual estou a dormir a ter um pesadelo.
Miguel Castro Caldas